No dia 27 de junho
de 2018, o Brasil disputou seu terceiro jogo na Copa do Mundo da
Rússia. O Brasil vinha de um empate com a Suíça e uma vitória
suada contra a Costa Rica. O jogo, realizado no estádio Spartak de
Moscou contra a Sérvia, foi bem disputado e a seleção brasileira
venceu por 2 a 0, com um gol de Paulinho no primeiro tempo e um gol
de Thiago Silva no segundo. O resultado levou o Brasil para disputar
as oitavas de final contra o México.
Neste dia, a torcida
brasileira na Rússia chamou a atenção da imprensa internacional
por causa de sua atuação dentro e fora do estádio. Conhecido por
ser um povo de cultura mais reservada, os russos são comumente
retratados como um povo frio e mostrou-se surpreso com os brasileiros
que - tem fama de povo quente e festivo e - fizeram questão de
demonstrar isso por lá.
Por muitos motivos,
no mundo do futebol, a torcida é considerada o décimo segundo
jogador em campo. Suas participações durante as partidas empolgam e
costumam contagiar os jogadores dentro e fora do jogo.
Uma das sensações
nas transmissões dos jogos são as cenas exibidas dos torcedores nas
arquibancadas. As poderosas teleobjetivas de fotógrafos e
cinegrafistas capturam momentos épicos jogo após jogo. Conseguem
apanhar e repercutir uma miríade de expressões curiosas. Ansiedade,
alegria, nervosismo e tristeza compõem capas de jornais e revistas,
geram memes e criam virais na Internet. Em cada lance a vibração é
estampada no rosto dos torcedores. Muitos sentimentos percorrem o
corpo dos indivíduos que os exteriorizam das mais diversas formas
gerando imagens espetaculares.
As perfomances
individuais são amplificadas quando o sentimento é comum e
simultâneo. Esse sentimento coletivo é externado em manifestações
emocionantes sendo as “ôlas” sua expressão mais emblemática.
Um movimento que possui uma plástica própria e hipnotizante.
É tarefa comum para
a torcida brasileira quebrar a rigidez protocolar nos ritos
futebolísticos. Já é frequente a torcida continuar cantando em
coro o hino nacional mesmo após o fim da execução pela organização
do evento no começo das partidas.
Mas a participação
das torcidas de futebol não se limitam ao momento do jogo nas
arquibancadas. Neste dia, especialmente, a torcida brasileira
repercutiu em todo mundo no pré-jogo, à caminho do estádio. Depois
do tradicional ‘esquenta’ que reúne os torcedores em um mesmo
lugar, centenas de brasileiros lotaram as históricas e palacianas
estações de metrô russo e promoveram um espetáculo emocionante ao
entoar hinos e canções em coro.
Entoar músicas de
incentivo é comum a todas as torcidas assim como repeti-las
continuamente em campeonatos, copas e disputas diversas. Este ano, no
entanto, uma renovação no repertório musical das canções da
torcida brasileira impactou e surpreendeu positivamente muitas
pessoas.
Pelo menos duas
novas músicas agitavam a torcida brasileira. Destaco aqui as duas
mais repetidas antes, durante e depois dos jogos. Uma relembrava cada
uma das cinco conquistas de mundial do Brasil, trazendo informações
quanto ao ano da copa e aos jogadores que mais se destacaram em cada
uma delas. Com uma melodia simples e letra objetiva a canção teve
uma ótima aceitação e foi cantada com empolgação por todos os
torcedores do Brasil. Impossível não cantar junto:
“Êêêê,
em
cinco-oito
foi Pelééé
Em
meia-dois foi o Manééé
Em
sete-zero
o esquadrãão
Primeiro
a ser tricampeãão!
Ôôôô,
noventa
e quatro
Romáriôôô
Dois
mil e dois Fenomenôôô
Primeiro
tetracampeãão
Único
penta é Brasilzãão!
Ôôôô,
se
muitas
glórias eu viviii
Com
muitas outras vou sonhaar
E
em dezoito com Neymaar
Mais
uma estrela vou buscaar
Ôôôô,
Brasil
olê, olê, olêêê...”
A outra canção
destacada foi executada à exaustão e tem uma história bem
interessante. A canção original se chama “Bella Ciao”. Tem
origens nos campos italianos dos fins do século XIX; foi uma canção
de protesto durante a Primeira Guerra Mundial; representou a
resistência rebelde na Itália de Mussolini e durante a Segunda
Guerra Mundial; foi cultuada como um hino antifascista depois da
guerra e em protestos libertários em Paris, Berlim, Praga, Viena e
em outras cidades da Europa.
Também instigou
protestos esquerdistas mundo afora, incluindo campanhas eleitorais na
Grécia e manifestações a favor da democracia na Ásia e em outros
continentes. Tem muitas versões gravadas em diversos idiomas e hoje
é um dos hinos oficiais do time italiano Livorno Calcio.
Esta música teve
sua letra alterada e adaptada ao longo de sua história e ao sabor
dos acontecimentos em que era inserida mas sua versão mais conhecida
é esta antifascista:
“Una mattina mi
sono svegliato,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi sono
svegliato,
e ho trovato
l'invasor.
O partigiano,
portami via,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano,
portami via,
ché mi sento di
morir.
E se io muoio da
partigiano,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da
partigiano,
tu mi devi
seppellir.
E seppellire lassù
in montagna,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù
in montagna,
sotto l'ombra di un
bel fior.
Tutte le genti che
passeranno,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Tutte le genti che
passeranno,
Mi diranno «Che bel
fior!
È questo il fiore
del partigiano,
o bella, ciao!
bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
È questo il fiore
del partigiano, morto per la libertà!”
É belíssima e
altamente emotiva. Sua melodia é facilmente memorizada e logo a
estamos cantarolando sem precisar necessariamente saber a letra. É
uma daquelas músicas ‘chiclete’ que grudam na sua memória e só
com algum esforço conseguimos tirá-la da mente.
Por essas
características ela entrou no gosto popular que preservou sua
melodia mas teve sua letra transformada em:
“O Di Maria, o
Mascherano,
o Messi tchau, Messi
tchau, Messi tchau, tchau, tchau.
Os argentinos, estão
chorando
porque essa Copa eu
vou ganhar...”
A letra de “Messi
Tchau” faz uma brincadeira com famosos jogadores argentinos e
divertiu muita gente durante os jogos da copa. O curioso na história
dessa música denota também a penetração dos serviços de
streaming no Brasil. Desconhecida da grande massa da população
brasileira, esta canção se tornou popular no país após a
repercussão de uma série de TV espanhola que usava o hino
libertário partisano em sua trilha sonora.
A série de TV
difundida como “A Casa de Papel” no Brasil, logo estimulou a
turma do funk a criar uma versão chamada “Só quer vrau”, o
pessoal do forró também criou a sua versão e logo as torcidas
organizadas a adaptaram para o futebol.
A versão da torcida
foi rapidamente difundida nas redes sociais e televisão e logo
podíamos ouví-la em bares, nas Fifa Fan Fest e nas ruas. Onde
houvesse um grupo de torcedores brasileiros não demorava para ser
entoada animadamente e aos gritos por todos os presentes.
Disseminou-se como
um vírus por toda parte. Qualquer menção à Messi, aos argentinos
ou à seleção brasileira de futebol era motivo para puxar a música
que contagiava um vizinho incalto com facilidade.
É um fenômeno
comum em eventos globais a Copa do Mundo mas fazia tempo que não
tinhamos uma renovação aceitável no repertório de hinos da
torcida brasileira. Muitos torcedores e veículos de comunicação
perceberam essa mudança e, de modo geral, receberam com empolgação
as novidades.
O hino popular da
Copa de 1970 foi um dos mais amados e empolgantes de todos os tempos.
Desde lá, se passaram 48 anos e a cada quatro anos compositores
famosos e artistas desconhecidos tentam emplacar novas canções,
novos hinos e novas melodias que façam o brasileiro cantar e se
emocionar junto. A canção ufanista “Pra Frente Brasil” de
Miguel Gustavo e Raul de Souza ainda provoca arrepios quando a
ouvimos tocar:
“Noventa milhões
em ação
Pra frente, Brasil
Do meu coração
Todos juntos vamos
Pra frente, Brasil
Salve a Seleção!
De repente é aquela
corrente pra frente
Parece que todo o
Brasil deu a mão
Todos ligados na
mesma emoção
Tudo é um só
coração!
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil,
Brasil
Salve a Seleção!
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil,
Brasil
Salve a Seleção!”
É envolvente e
empolgante em letra e melodia. É simples e agradável. Ainda é um
marco na cultura de massa, na conciliação poderosa entre arte e
esporte. É óbvio que a renovação trazida pela Copa do Mundo Fifa
2018 ainda não alcançou o patamar de estado da arte revelado em
1970 mas exibe um frescor que nos faz crer que em 2022, no Qatar, a
torcida brasileira terá muito mais o que comemorar ou, pelo menos,
muito mais formas de celebrar.