30.7.18

A Torcida Espetáculo



No dia 27 de junho de 2018, o Brasil disputou seu terceiro jogo na Copa do Mundo da Rússia. O Brasil vinha de um empate com a Suíça e uma vitória suada contra a Costa Rica. O jogo, realizado no estádio Spartak de Moscou contra a Sérvia, foi bem disputado e a seleção brasileira venceu por 2 a 0, com um gol de Paulinho no primeiro tempo e um gol de Thiago Silva no segundo. O resultado levou o Brasil para disputar as oitavas de final contra o México.

Neste dia, a torcida brasileira na Rússia chamou a atenção da imprensa internacional por causa de sua atuação dentro e fora do estádio. Conhecido por ser um povo de cultura mais reservada, os russos são comumente retratados como um povo frio e mostrou-se surpreso com os brasileiros que - tem fama de povo quente e festivo e - fizeram questão de demonstrar isso por lá.

Por muitos motivos, no mundo do futebol, a torcida é considerada o décimo segundo jogador em campo. Suas participações durante as partidas empolgam e costumam contagiar os jogadores dentro e fora do jogo.

Uma das sensações nas transmissões dos jogos são as cenas exibidas dos torcedores nas arquibancadas. As poderosas teleobjetivas de fotógrafos e cinegrafistas capturam momentos épicos jogo após jogo. Conseguem apanhar e repercutir uma miríade de expressões curiosas. Ansiedade, alegria, nervosismo e tristeza compõem capas de jornais e revistas, geram memes e criam virais na Internet. Em cada lance a vibração é estampada no rosto dos torcedores. Muitos sentimentos percorrem o corpo dos indivíduos que os exteriorizam das mais diversas formas gerando imagens espetaculares.

As perfomances individuais são amplificadas quando o sentimento é comum e simultâneo. Esse sentimento coletivo é externado em manifestações emocionantes sendo as “ôlas” sua expressão mais emblemática. Um movimento que possui uma plástica própria e hipnotizante.

É tarefa comum para a torcida brasileira quebrar a rigidez protocolar nos ritos futebolísticos. Já é frequente a torcida continuar cantando em coro o hino nacional mesmo após o fim da execução pela organização do evento no começo das partidas.

Mas a participação das torcidas de futebol não se limitam ao momento do jogo nas arquibancadas. Neste dia, especialmente, a torcida brasileira repercutiu em todo mundo no pré-jogo, à caminho do estádio. Depois do tradicional ‘esquenta’ que reúne os torcedores em um mesmo lugar, centenas de brasileiros lotaram as históricas e palacianas estações de metrô russo e promoveram um espetáculo emocionante ao entoar hinos e canções em coro.

Entoar músicas de incentivo é comum a todas as torcidas assim como repeti-las continuamente em campeonatos, copas e disputas diversas. Este ano, no entanto, uma renovação no repertório musical das canções da torcida brasileira impactou e surpreendeu positivamente muitas pessoas.

Pelo menos duas novas músicas agitavam a torcida brasileira. Destaco aqui as duas mais repetidas antes, durante e depois dos jogos. Uma relembrava cada uma das cinco conquistas de mundial do Brasil, trazendo informações quanto ao ano da copa e aos jogadores que mais se destacaram em cada uma delas. Com uma melodia simples e letra objetiva a canção teve uma ótima aceitação e foi cantada com empolgação por todos os torcedores do Brasil. Impossível não cantar junto:

Êêêê, em cinco-oito foi Pelééé
Em meia-dois foi o Manééé
Em sete-zero o esquadrãão
Primeiro a ser tricampeãão!
Ôôôô, noventa e quatro Romáriôôô
Dois mil e dois Fenomenôôô
Primeiro tetracampeãão
Único penta é Brasilzãão!

Ôôôô, se muitas glórias eu viviii
Com muitas outras vou sonhaar
E em dezoito com Neymaar
Mais uma estrela vou buscaar
Ôôôô, Brasil olê, olê, olêêê...”

A outra canção destacada foi executada à exaustão e tem uma história bem interessante. A canção original se chama “Bella Ciao”. Tem origens nos campos italianos dos fins do século XIX; foi uma canção de protesto durante a Primeira Guerra Mundial; representou a resistência rebelde na Itália de Mussolini e durante a Segunda Guerra Mundial; foi cultuada como um hino antifascista depois da guerra e em protestos libertários em Paris, Berlim, Praga, Viena e em outras cidades da Europa.

Também instigou protestos esquerdistas mundo afora, incluindo campanhas eleitorais na Grécia e manifestações a favor da democracia na Ásia e em outros continentes. Tem muitas versões gravadas em diversos idiomas e hoje é um dos hinos oficiais do time italiano Livorno Calcio.

Esta música teve sua letra alterada e adaptada ao longo de sua história e ao sabor dos acontecimentos em que era inserida mas sua versão mais conhecida é esta antifascista:

“Una mattina mi sono svegliato,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi sono svegliato,
e ho trovato l'invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.

E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.

E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna,
sotto l'ombra di un bel fior.

Tutte le genti che passeranno,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Tutte le genti che passeranno,
Mi diranno «Che bel fior!

È questo il fiore del partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
È questo il fiore del partigiano, morto per la libertà!”

É belíssima e altamente emotiva. Sua melodia é facilmente memorizada e logo a estamos cantarolando sem precisar necessariamente saber a letra. É uma daquelas músicas ‘chiclete’ que grudam na sua memória e só com algum esforço conseguimos tirá-la da mente.

Por essas características ela entrou no gosto popular que preservou sua melodia mas teve sua letra transformada em:

“O Di Maria, o Mascherano,
o Messi tchau, Messi tchau, Messi tchau, tchau, tchau.
Os argentinos, estão chorando
porque essa Copa eu vou ganhar...”

A letra de “Messi Tchau” faz uma brincadeira com famosos jogadores argentinos e divertiu muita gente durante os jogos da copa. O curioso na história dessa música denota também a penetração dos serviços de streaming no Brasil. Desconhecida da grande massa da população brasileira, esta canção se tornou popular no país após a repercussão de uma série de TV espanhola que usava o hino libertário partisano em sua trilha sonora.

A série de TV difundida como “A Casa de Papel” no Brasil, logo estimulou a turma do funk a criar uma versão chamada “Só quer vrau”, o pessoal do forró também criou a sua versão e logo as torcidas organizadas a adaptaram para o futebol.

A versão da torcida foi rapidamente difundida nas redes sociais e televisão e logo podíamos ouví-la em bares, nas Fifa Fan Fest e nas ruas. Onde houvesse um grupo de torcedores brasileiros não demorava para ser entoada animadamente e aos gritos por todos os presentes.

Disseminou-se como um vírus por toda parte. Qualquer menção à Messi, aos argentinos ou à seleção brasileira de futebol era motivo para puxar a música que contagiava um vizinho incalto com facilidade.

É um fenômeno comum em eventos globais a Copa do Mundo mas fazia tempo que não tinhamos uma renovação aceitável no repertório de hinos da torcida brasileira. Muitos torcedores e veículos de comunicação perceberam essa mudança e, de modo geral, receberam com empolgação as novidades.

O hino popular da Copa de 1970 foi um dos mais amados e empolgantes de todos os tempos. Desde lá, se passaram 48 anos e a cada quatro anos compositores famosos e artistas desconhecidos tentam emplacar novas canções, novos hinos e novas melodias que façam o brasileiro cantar e se emocionar junto. A canção ufanista “Pra Frente Brasil” de Miguel Gustavo e Raul de Souza ainda provoca arrepios quando a ouvimos tocar:

“Noventa milhões em ação
Pra frente, Brasil
Do meu coração

Todos juntos vamos
Pra frente, Brasil
Salve a Seleção!

De repente é aquela corrente pra frente
Parece que todo o Brasil deu a mão
Todos ligados na mesma emoção
Tudo é um só coração!

Todos juntos vamos
Pra frente Brasil, Brasil
Salve a Seleção!

Todos juntos vamos
Pra frente Brasil, Brasil
Salve a Seleção!”

É envolvente e empolgante em letra e melodia. É simples e agradável. Ainda é um marco na cultura de massa, na conciliação poderosa entre arte e esporte. É óbvio que a renovação trazida pela Copa do Mundo Fifa 2018 ainda não alcançou o patamar de estado da arte revelado em 1970 mas exibe um frescor que nos faz crer que em 2022, no Qatar, a torcida brasileira terá muito mais o que comemorar ou, pelo menos, muito mais formas de celebrar.